sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Sexto dia: Rumo às nuvens

Um dos tours mais procurados em Salta é o Tren de Las Nubes, um roteiro férroviário que parte de Salta e sobe a cordilheira por uma região de minas, a uma altura de mais de 4000 metros, proporcionando vistas espetaculares. Pesquisamos várias agências de viagens na véspera, e com mapas na mão e muitas dicas dos vendedores, confirmamos que há uma estrada seguindo um caminho paralelo ao trem, e montamos nosso próprio roteiro. Afinal, tinhamos carro e minha experiência anterior pela desértica ruta 40 ao sul, na Patagônia.
Carro abastecido, botamos o pé na estrada. Saímos pela então bem conservada Ruta 51 até a cidade de Campo Quijano, onde encontramos uma antiga locomotiva a vapor, usada nos primórdios da inauguração da rota.

Saindo da cidade, acaba o asfalto. E aí, a ruta vira uma estrada de rípio que vai acompanhando o Rio Toro, subindo as montanhas

Um pouco mais adiante, somos forçados a parar. Uma caminhão descarrega material na beira do rio, e uma escavadeira Caterpillar ajeita as pedras no leito. Nada que as enxurradas promovidas pelo degelo da neve não tratem de espalhar mais tarde...


A Berlingo segue encarando valentemente o trecho de rípio. A estrada segue colada ao rio, e vai ziguezaguendo com a linha do trem, que a corta com viadutos ou passagens de nível.

Que as estradas estão cheias de burros e outros animais, não é novidade. Aqui, não é apenas em sentido figurado. Não se pode andar a mais de 40 km/h, sob risco de atropelar a fauna. A paisagem está aí para ser aproveitada.


A ruta 51 é algo completamente irregular. Ela alterna bons trechos asfaltados, com trilhas dignas de mountain bike. Neste ponto, a pista se estreita entre o rio e a montanha, e praticamente só passa um carro por vez. O bacana é que ela é rota de caminhões e carretas que abastecem e trazem minério de San Antônio. Então, é necessário sangue frio e cálculo para não dar de cara com uma Scania carregada de pedras descendo a montanha atrás de uma curva.


Em certo trecho, a estrada entrega sua vocação original. Ela era um caminho internacional para o Chile, e essa ponte, apesar de estar a mais de 200 km da fronteira, ganhou uma homenagem especial.

Alguns quilômetros adiante, passa-se pelo povoado de Santa Rosa de Lima, onde há uma pitoresca capela, um museu e venda de artesanato. Subir com o tanque de combustível abastecido até a boca era uma necessidade. Mas vai custar um polimento...

Seguindo em frente, começa uma série de subidas acentuadas, felizmente com pista asfaltada. A altura sobe de 2600 a 4000 metros em pouco tempo, e o efeito da mudança se faz sentir. Tanto na gente como no carro. Abaixar-se bruscamente a essa altura deixa qualquer um tonto. E o carro, também sente a falta de ar para queimar combustível. Ponto morto deixa de funcionar, e se não souber acelerar, o carro afoga e fica alí mesmo, empacado. A quatro mil metros, também "furamos" uma grande nuvem, que encobria os picos nevados da cordilheira:


E vencemos a montanha. Experimentamos sair da nossa cabine climatizada e vivenciar o clima. Dupla surpresa. Uma "chuva" congelada cobria as roupas com pingos de gelo. Do topo da montanha, víamos o outro lado...


O GPS marca magníficos 4103 metros! 

E a paisagem se descortina aos nossos olhos. Uma bela planície ensolarada escondida nas alturas:


Alguns quilômetros adiante, volta a estrada de rípio. Mas a paisagem é tão bela e selvagem, que não sentimos falta do asfalto. Pelo contrário. Queremos que a região continue assim, isolada, intocada e linda:

Além dos poucos carros que passam pelo local, os únicos habitantes da região são as pacatas lhamas:


10 quilômetros adiante, chegamos a San Antonio de Los Cobres, acampamento de mineradores que foi crescendo, agregou alguns moradores indígenas, mas nem por isso deixou de ter um aspecto de cidadezinha desolada no meio do nada.


Hora de abastecer no único posto da redondeza. A tranquilidade canina entrega o quão movimentado é o estabelecimento. Nossa van, que vinha fazendo bons 12 km/l com ar condicionado, não rende mais do que 8 km por litro de nafta nessa altitude. E com quase metade da potência. Haja fôlego.


Paramos em um dos viadutos do trem, na saída de San Antonio de Los Cobres, para fotografar a placa, e somos atacados. Por crianças nativas. O menino se oferece como guia para nos levar até uma mina abandonada, ao Viaducto La Polvorilla e uma cidade deserta. As duas irmãs dele correm ao redor nosso, pedindo "caramelos". Como já sabiamos o caminho, e largar o menino no meio da estrada para seguir viagem em frente era meio desumano, presenteamos os três com chocolates. Depois constatamos que os habitantes mais velhos têm quase todos os dentes cariados. Falha nossa...


Seguindo em frente, o caminho serpenteia por um bonito cânion. E curiosamente, o trânsito desaparece.  Constatariamos mais tarde que neste ponto, por um inexplicável erro cartográfico, a Ruta 40 não é a que aparece nos mapas e nem no GPS, mas sim, uma estrada alternativa em direção às salinas de Jujuy.  Seguimos em frente, atrás do fim da linha do Tren de Las Nubes.

No meio do caminho, uma mina de cobre abandonada (e destruída). Do outro lado, um cemitério improvisado com muitos túmulos. O cenário faz a imaginação voar alto, vislumbrando o que teria acontecido com os trabalhadores...


E chegamos ao fim do trajeto do trem. 4214 metros pelo nosso GPS. O orgulho de engenharia da linha férrea está detalhado na plaquinha que antecede a obra.



Ao pé da ponte, como não poderia deixar de ser, um pequeno estabelecimento, misto de loja de artesanato e "cafeteria", era o último sinal de civilização pelos próximos 100 km. Até uma lhama ganhava a vida fazendo pose para os turistas:


Confiantes nas indicações da dona da lhama (e provavelmente do local), seguimos em frente pelo resto de estrada. Segundo ela, era "só um trechinho em mal estado, depois melhorava". Seguimos em frente! Mas a estrada começava a dar medo...

Embora a "ruta" ameaçasse ficar boa...

 Tínhamos a impressão de que ela se desmanchava a cada quilômetro que avançávamos...

A paisagem extraterrestre compensava a vontade de seguir em frente. O que sairia dalí? Lêmures? O Povo da Areia? Macacos? Dr. Cornelius???

Fascinante. Mas nada de civilização, nada de placas, nada de trânsito em sentido contrário... E o tempo fechando...

E o nosso fiel GPS, só para tranquilizar, indicava que o próximo cruzamento, retorno, desvio ou qualquer coisa que indicasse uma mudança de rota estava a mais de 100 km... A 4214 metros de altura, se fossemos surpreendidos por uma tempestade no meio da montanha, sobreviveríamos?


Não! Esse é o limite entre a aventura e o bom senso. Tínhamos barracas, cobertores, colchões, algumas provisões, mas talvez nem um 4x4 saísse do meio da cordilheira após uma enxurrada que interrompesse a estrada. Sem telefone para fazer contato, seguir em frente era algo insano. Assim, devidamente amarelados, determinamos que esse era o ponto limite da viagem!


E sem ter como avançar, demos meia volta, e retornamos para Salta, após passarmos pela irônica plaquinha que marcava o início daquele fim de mundo. 


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